terça-feira, 19 de setembro de 2017

Navalhas e vozes


Vozes, vozes, vozes, vozes… Ela ouvia as elétricas, ouvia as mais humanas. Já ouve tempo em que era a sinfonia de gritos de palavras vindas de corações maldosos. Ainda antes ouve tempo em que as palavras eram indiscretas, mordazes e lascivas. Revelavam segredos podres que ela não queria ouvir.
Hoje pareciam apenas acordes de uma sinfonia inusitada. Ela já teve ódio das pessoas e suas palavras. É verdade, seu tempo mais feliz ocorreu no tempo em que passou absolutamente só. No tempo em que significava desespero e fracasso ouvir outras vozes.
Mas ela passou por isso. Transcendeu a raiva. Talvez nem fosse uma legítima aversão. Talvez até fosse afinidade. Mas melhor mesmo era fingir-se soberba, superior. Entretanto, aquela altura, já aprendera a desligar-se de suas falhas, e conseguia escutar. Ultimamente, ia além. Observava olhos, gestos. Era prazeroso descobrir segredos que as pessoas não conseguiam camuflar. Ela percorria feições, cacoetes. Elaborava delicadas prováveis personagens. Talvez apenas pelo prazer de condená-las ou absolve-las. Ser juíza e algoz. Prazer nefasto.
Observar dores e desenhar se elas são ou não merecidas. Apontar o lápis e observar desejos secretos, ajustamentos de braços e mãos que sentenciem possíveis traições.
Olhares cúmplices de ciúme e vergonha. Aqueles momentos únicos em que olhares se cruzam e investigam até mesmo aquilo que não queremos admitir. Dentro das pessoas existem desejos de morte. Os olhos dela adentram a parte suja dos corações.
E se deliciam. Também existe maldade dentro dela. Mas ela não a nega, nem cultiva culpa. Ela sorve o conteúdo dos lábios, ao ver que o mal insiste em não se materializar por muito pouco.
Dores que ela ambiciona por ser cúmplice.
As paredes são de um amarelo bem claro, as luzes são insistentes, quadradas, fortes e múltiplas.
Na cadeira ao lado, sons de uma boca muito parecida com uma que ela ama e odeia. A conversa sem hostilidades se faz tão prazerosa. É como uma conversa com ela, mas sem as armaduras. Um chá da tarde, num lugar bonito. Duas damas confidentes, elegantes e maliciosas.
O tempo a leva embora, os dedos estalam, e logo ela se percebe no limiar da dor. Minto. Nem tanto a dor. Mais a prova viva, inegável, purulenta e adornada de pus, que apenas reflete a ela o quanto ela permitiu-se vulnerável. Não é culpa. Ela não perde tempo. Ela apenas queria saber por que. Qual mecanismo de portas? Trincas? Ferrolhos? Chaves? Maçanetas? Portas? Tampas? Uma janelinha? Teria ela serrado alguma grade?
O que ela teria deixado aberto? Onde ela teria sido descuidada? Sem lamentações. Ela apenas precisava saber em que ponto tinha acontecido o vazamento, para conte-lo abruptamente.
Não se permitia ser fraca. Não se permitia esquecer suas origens. Queria apenas conseguir ser mais atenta.
Tinha outras opções. Será que esse era o início de sua quase morte? Nesses tempos, isso ainda seria necessário? Não negava que adoecia em todos os órgãos possíveis. Infecções da alma por todos os lugares.
Não poderia aceitar a outra possibilidade. A tristeza. Será mesmo que ela teria aberto todas as possibilidades infecciosas possíveis para a sua alma? Se assim ocorreu, não poderia deixar de se surpreender com tamanha façanha. Mesmo para quem ambiciona morrer, esse ainda podia ser visto como um grande feito. Imagine abrir todas as comportas da carne, vulnerabilizar-se por todos os poros?
Dê certo modo, ela compreendia que, de tanto ouvir aos outros, ficara surda para si mesma. Criou dentro de si um jogo onde apenas ganhavam aqueles que não tinham por si mesmos o menor vestígio de compaixão.
Tudo que chegava perto disso, ela rejeitava veementemente. Criou para si a metodologia de que viver era um surfista já velho e enfraquecido pelo tempo, mas que mesmo assim tentava dominar as melhores ondas. Uma luta completamente injusta e desigual. Viver significava atirar-se no precipício, sem preocupar se com cortes, escoriações, ossos quebrados ou com a morte. Ela, achando-se boneco de plástico flexível, viveu por entre quedas em abismos… Quase sempre.
Entretanto, nesse momento, ferimentos à mostra, infeccionados de morte, ela sabia que precisava viver. Não permitir que se escapasse por entre seus dedos, o restinho de vida que ainda podia agarrar. Pó de canela que se sopra.
A vida era hoje, agora. Atriz exímia que era, fingia muitíssimo bem um interesse pela vida, uma fome de conhecimento. Buscava o Sagrado. Aconselhava pessoas tão profissionalmente, que nem a maldadezinha se manifestava nessas horas. Mas existia um momento onde se revelava a fresta. Ao acordar. Não nos dias em que ele a acordava com beijos. Nesses não acontecia. Naqueles em que o despertador tocava a musiquinha de ninar, acredito eu que acontecia, mas a pressa a colocava rapidamente em contato com esse tempo e esse espaço. Sei que o Grande Buraco apresentava-se com todas as suas garras quando ela acordava sozinha e sem pressa. Uma pequena voz, chata e incoerente, murmurava pequenas frases desconexas, que ela teimava em não ouvir: “que merda”, “isso não acaba nunca” “quero voltar” “por que tenho que sair daqui?” “Não quero voltar para aquele lugar” “existe algo no mundo que me faça ter vontade de estar ali?”…
Ela sabia o que significava. Mas até então entendia como algo comum. Quem não quer permanecer no círculo energético? Quem não quer não sair nunca de perto dos melhores amigos?
Mas nem ela poderia vislumbrar que o inconsciente põe em prática seus desejos. Quem imaginaria que o seu próprio inconsciente seria obstinado ao ponto de abrir as portas do seu corpo físico para a morte? Mesmo você não desejando isso. Ou enganado, achando inocentemente que não quer.
Ela ficava sem fôlego, sentindo que seu inconsciente tentava mata-la, e ela nem ao menos sabia onde seriam as próximas navalhadas. Precisava lidar com isso.

O que você faria, caso sua mão esquerda tomasse vida própria, agarrasse uma navalha, e tentasse te matar, golpeando sem obedecer-te?

30 comentários:

  1. uau, que textão incrivel e essa ultima pergunta é de cortar a respiração, realmente é muito complicado quando caminhamos para o abismo mesmo não querendo, é como se não conseguíssemos parar mesmo querendo, é complicado :/

    beijinhooos

    https://nomundodeumamulher.blogspot.pt/

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  2. Nossa, muito bom e profundo, e a frase: O que você faria, caso sua mão esquerda tomasse vida própria, agarrasse uma navalha, e tentasse te matar, golpeando sem obedecer-te? nossa, é real.. vivo em guerra comigo mesma e sei o quanto é complicado lidar com isso..

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  3. Olá, tudo bem? Achei bastante sombrio e subjetivo esse seu texto. Você faz bem o uso de palavras e o jeito como você escreve me lembra alguns escritores que eu admiro e respeito. ''Viver significava atirar-se no precipício, sem preocupar se com cortes, escoriações, ossos quebrados ou com a morte.'' Realmente, viver é exatamente isso, é estar ciente de que vai sofrer, as pessoas são maldosas e vão machucar sempre. :/ Mas tem sempre alguém que arranca a pessoa do precipício e cura esses machucados. :) Sozinho ninguém pode mudar tudo, esse é o lado bonito desse mundo.

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  4. Incrivel seu texto.
    Temos nossas guerras internas, é cmo se nós mesmos fossemoa nós atacar.
    É o casa da sua mão tentandp te golpear.

    Muito bacana

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  5. ola tudo bem ? Otimo texto , uma reflexão e tanto , confesso que achei um pouco assustador :
    derepente sua mão toma vida propria e ...... confesso que tenho 45 anos é esse tipo de pensamento não passa em minha cabeça. Meu sentimento é que o tempo está passando e quero viver muito para não perder tempo. Bjssss

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  6. Olá tudo bem?!? Texto excelente, de teor reflexivo inusitado.
    Entretanto acredito ser importante ter um aviso a respeito do conteúdo do texto para as pessoas.
    Até mais!

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  7. Simplesmente adorei o texto. Um profundo mergulho na alma, desnudando os sentimentos, anseios, medos, desejos. Uma batalha entre a vida e a morte e o frágil muro que os separa. Parabéns pelo ótimo trabalho!

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  8. Uau! Que reflexão!Simplesmente adorei o texto ! me tocou muito essa frase O que você faria, caso sua mão esquerda tomasse vida própria, agarrasse uma navalha, e tentasse te matar, golpeando sem obedecer-te?
    A vida às vezes nos passa rasteiras tão inesperadas que a gente fica caído no chão sem saber como reagir ou qual rumo tomar. Que bom que a gente supera.


    Parabéns pelo ótimo trabalho!

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  9. Boa tarde, como vai? Que texto maravilhoso, ao ler percebi que você escreve com sentimentos e isso nos prende ao seu texto. Gostei bastante do tema abordado. Pois você me fez uma ótima reflexão. beijos e parabéns

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  10. Nossa, que texto profundo! Extremamente reflexivo! Vejo-me em alguns aspectos pensando em parecido com a personagem, mas vamos tentando viver um dia de cada vez. A pergunta final para mim foi que me impactou, pois infelizmente ja vivi isso...

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  11. Oie tudo bem?
    Que te texto incrivel, parabéns pelo dom das palavras, nossa que final, eu nem sei o que faria viu, que reflexão maravilhosa. Sucesso

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  12. Oi !! Tudo bem?
    Que texto incrível e cativante !! Amei a reflexão e confesso que fiquei parada um bom tempo pensando na pergunta do ultimo parágrafo.
    Bjs

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  13. W O W!
    Jamais teria pensando em um texto assim, voz e pôs tanto sentimwnros, aflições, dúvidas no seu texto que tô sem palavras.
    Realmente estou admirada com o enredo. Caraca, parabéns mesmo!

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  14. Uma reflexão muito forte dessa batalha interna que existe em todos nós.
    Achei o texto lindo mas um pouco sofrido, como se toda a amargura do mundo tomasse forma ao inverso, de fora para dentro corroendo a alma.
    Bjinhos,
    www.prosaamiga.com.br

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  15. Olá,
    O texto ficou muito bom e da para refletir bastante, deve ser desesperador não ter o controle do próprio corpo imagine a mão tendo vida própria e tentando matar a pessoa, terrível nem sei o que faria.

    fabiisanto.blogspot.com.br

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  16. Seu texto é uma ótima reflexão. A diversidade de caráter é devido ao tempo desigual dado aos valores. Somente um com o outro veremos a importância das qualidades que nos falta eo potencial de nossa alma inacabada.

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  17. Olá!
    Adorei seu texto. Ele apresenta um tom sombrio, mas bem realista. Além disso, é muito bem escrito.
    Me senti tocado na alma com essas palavras.

    Abraço!

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  18. Olá...
    Amei o seu texto! Ele é questionador, reflexivo, e diria até sombrio... Gostei bastante de suas palavras, acho que você escreve super bem e fiquei aqui pensando em sua pergunta lá no finalzinho. Difícil de responder!
    Quero continuar lendo seus posts ;)

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  19. Concordo com as amigas a cima o seu texto apresenta um tom sombrio mesmo, mas cada palavra me deu vontade de ler até o fim.

    ''O que você faria, caso sua mão esquerda tomasse vida própria, agarrasse uma navalha, e tentasse te matar, golpeando sem obedecer-te?''

    R: foi uma pergunta que fiquei pensando e pensando e pensando e pensando, mas não cheguei a nenhuma conclusão apenas pensei que seria assustador e muito real.

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  20. Uau, que mega texto, já agora, como vai?
    Antes de prosseguir com o meu comentário, queria dar-te uma dica (desculpa tratar-te por tu, mas sou de Portugal), para a próxima colocar algumas imagens no teu texto, aumenta a possibilidade de teres mais leituras e comentários!
    Quanto ao teu post, adorei, a tua escrita é direta, com frases que nunca li, e em relação à pergunta que fizeste no final, não sei o que faria. Talvez me deixasse morrer...
    Bj :*

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  21. Oie!

    Nossa que texto, senti arrepios enquanto li! Infelizmente essa é uma realidade bem complicada, e sobre a pergunta tentaria sobreviver, lutaria pela minha vida!

    Bjs, vem participar do nosso sorteio e seja um dos 3 Ganhadores! =D
    http://resenhasteen.blogspot.com.br/2017/08/sorteio-do-desapego-3-ganhadores.html

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  22. Oi, tudo bem? Nossa que texto mais intenso. Você escreve incrivelmente bem. Conforme fui lendo fui sentindo uma imersão em cada parágrafo. Com relação a pergunta ao final do post sinceramente não sei o que faria se metade de mim decidisse fazer algo sem me obedecer. Um pouco angustiante essa situação. Sucesso com seus textos. Um abraço, Érika *-*

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  23. Oi, tudo bom?
    Nossa que texto fantástico, adoro quando me deparo com esse tipo de postagem, um texto que nós faz pensar e refletir sobre as coisas.
    Beijos, Joyce de Freitas.

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  24. Olá! Olha, não sei responder essa pergunta. Fiquei até pensando nisso rsrsrs Parabéns pelo texto, forte e dramático e a pergunta no final deu um toque a mais, muito bom mesmo! Beijos!
    Entre Livros e Pergaminhos

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  25. Minha Nossa! Como você escreve bem!
    Eu amei seu texto e você acabou de ganhar mais uma seguidora em seu blog!!
    Parabéns!! Vou ficar refletindo um pouco e depois lhe respondo essa pergunta!

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  26. Meus parabéns pela sua ótima escrita, achei esse texto maravilhoso e com uma coisa tão angustiante e profunda nos pensamentos. Daqueles para ler e aplaudir por deixar cada parágrafo tão interessante. O final me deixou angustiada ao imaginar a situação, fechando com chave de ouro ao jogar a nossa imaginação. Parabéns mesmo! Gostei demais

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  28. Nossa, que tensão!!
    Fico pensando como seria angustiante ter minha mão com uma navalha tentando acabar comigo...é claro que eu lutaria mas é uma reflexão sombria.

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  29. Olá!
    Esse texto é bem profundo e totalmente reflexivo. Temos vivido em um tempo em que as pessoas acham que suicídio é a solução dos problemas. Mas temos que mostrar que a vida é bela e ajudar aqueles que não enxergam a cor que existe nela. Fiquei bem triste com o final que a personagem tomou, mas torço com todas as minhas forças que isso não se torne realidade para nenhum ser humano.
    Beijinhos!

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