Vozes,
vozes, vozes, vozes… Ela ouvia as elétricas, ouvia as mais humanas. Já ouve
tempo em que era a sinfonia de gritos de palavras vindas de corações maldosos.
Ainda antes ouve tempo em que as palavras eram indiscretas, mordazes e
lascivas. Revelavam segredos podres que ela não queria ouvir.
Hoje
pareciam apenas acordes de uma sinfonia inusitada. Ela já teve ódio das pessoas
e suas palavras. É verdade, seu tempo mais feliz ocorreu no tempo em que passou
absolutamente só. No tempo em que significava desespero e fracasso ouvir outras
vozes.
Mas
ela passou por isso. Transcendeu a raiva. Talvez nem fosse uma legítima
aversão. Talvez até fosse afinidade. Mas melhor mesmo era fingir-se soberba,
superior. Entretanto, aquela altura, já aprendera a desligar-se de suas falhas,
e conseguia escutar. Ultimamente, ia além. Observava olhos, gestos. Era
prazeroso descobrir segredos que as pessoas não conseguiam camuflar. Ela
percorria feições, cacoetes. Elaborava delicadas prováveis personagens. Talvez
apenas pelo prazer de condená-las ou absolve-las. Ser juíza e algoz. Prazer
nefasto.
Observar
dores e desenhar se elas são ou não merecidas. Apontar o lápis e observar
desejos secretos, ajustamentos de braços e mãos que sentenciem possíveis
traições.
Olhares
cúmplices de ciúme e vergonha. Aqueles momentos únicos em que olhares se cruzam
e investigam até mesmo aquilo que não queremos admitir. Dentro das pessoas
existem desejos de morte. Os olhos dela adentram a parte suja dos corações.
E
se deliciam. Também existe maldade dentro dela. Mas ela não a nega, nem cultiva
culpa. Ela sorve o conteúdo dos lábios, ao ver que o mal insiste em não se
materializar por muito pouco.
Dores
que ela ambiciona por ser cúmplice.
As
paredes são de um amarelo bem claro, as luzes são insistentes, quadradas,
fortes e múltiplas.
Na
cadeira ao lado, sons de uma boca muito parecida com uma que ela ama e odeia. A
conversa sem hostilidades se faz tão prazerosa. É como uma conversa com ela,
mas sem as armaduras. Um chá da tarde, num lugar bonito. Duas damas
confidentes, elegantes e maliciosas.
O
tempo a leva embora, os dedos estalam, e logo ela se percebe no limiar da dor.
Minto. Nem tanto a dor. Mais a prova viva, inegável, purulenta e adornada de
pus, que apenas reflete a ela o quanto ela permitiu-se vulnerável. Não é culpa.
Ela não perde tempo. Ela apenas queria saber por que. Qual mecanismo de portas?
Trincas? Ferrolhos? Chaves? Maçanetas? Portas? Tampas? Uma janelinha? Teria ela
serrado alguma grade?
O
que ela teria deixado aberto? Onde ela teria sido descuidada? Sem lamentações.
Ela apenas precisava saber em que ponto tinha acontecido o vazamento, para
conte-lo abruptamente.
Não
se permitia ser fraca. Não se permitia esquecer suas origens. Queria apenas
conseguir ser mais atenta.
Tinha
outras opções. Será que esse era o início de sua quase morte? Nesses tempos,
isso ainda seria necessário? Não negava que adoecia em todos os órgãos
possíveis. Infecções da alma por todos os lugares.
Não
poderia aceitar a outra possibilidade. A tristeza. Será mesmo que ela teria
aberto todas as possibilidades infecciosas possíveis para a sua alma? Se assim
ocorreu, não poderia deixar de se surpreender com tamanha façanha. Mesmo para
quem ambiciona morrer, esse ainda podia ser visto como um grande feito. Imagine
abrir todas as comportas da carne, vulnerabilizar-se por todos os poros?
Dê
certo modo, ela compreendia que, de tanto ouvir aos outros, ficara surda para
si mesma. Criou dentro de si um jogo onde apenas ganhavam aqueles que não
tinham por si mesmos o menor vestígio de compaixão.
Tudo
que chegava perto disso, ela rejeitava veementemente. Criou para si a
metodologia de que viver era um surfista já velho e enfraquecido pelo tempo,
mas que mesmo assim tentava dominar as melhores ondas. Uma luta completamente
injusta e desigual. Viver significava atirar-se no precipício, sem preocupar se
com cortes, escoriações, ossos quebrados ou com a morte. Ela, achando-se boneco
de plástico flexível, viveu por entre quedas em abismos… Quase sempre.
Entretanto,
nesse momento, ferimentos à mostra, infeccionados de morte, ela sabia que
precisava viver. Não permitir que se escapasse por entre seus dedos, o restinho
de vida que ainda podia agarrar. Pó de canela que se sopra.
A
vida era hoje, agora. Atriz exímia que era, fingia muitíssimo bem um interesse
pela vida, uma fome de conhecimento. Buscava o Sagrado. Aconselhava pessoas tão
profissionalmente, que nem a maldadezinha se manifestava nessas horas. Mas
existia um momento onde se revelava a fresta. Ao acordar. Não nos dias em que
ele a acordava com beijos. Nesses não acontecia. Naqueles em que o despertador
tocava a musiquinha de ninar, acredito eu que acontecia, mas a pressa a
colocava rapidamente em contato com esse tempo e esse espaço. Sei que o Grande
Buraco apresentava-se com todas as suas garras quando ela acordava sozinha e
sem pressa. Uma pequena voz, chata e incoerente, murmurava pequenas frases
desconexas, que ela teimava em não ouvir: “que merda”, “isso não acaba nunca”
“quero voltar” “por que tenho que sair daqui?” “Não quero voltar para aquele
lugar” “existe algo no mundo que me faça ter vontade de estar ali?”…
Ela
sabia o que significava. Mas até então entendia como algo comum. Quem não quer
permanecer no círculo energético? Quem não quer não sair nunca de perto dos
melhores amigos?
Mas
nem ela poderia vislumbrar que o inconsciente põe em prática seus desejos. Quem
imaginaria que o seu próprio inconsciente seria obstinado ao ponto de abrir as
portas do seu corpo físico para a morte? Mesmo você não desejando isso. Ou
enganado, achando inocentemente que não quer.
Ela
ficava sem fôlego, sentindo que seu inconsciente tentava mata-la, e ela nem ao
menos sabia onde seriam as próximas navalhadas. Precisava lidar com isso.
O
que você faria, caso sua mão esquerda tomasse vida própria, agarrasse uma
navalha, e tentasse te matar, golpeando sem obedecer-te?