domingo, 11 de outubro de 2009


O MENINO E O HOMEM



UANDO chovia, no meu tempo de menino, a casa virava um festival de
goteiras. Eram pingos do teto ensopando o soalho de todas as salas e
quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos, todo mundo levando e
trazendo baldes, bacias,

panelas, penicos e o que mais houvesse para aparar a
água que caía e para que os vazamentos não

se transformassem numa inundação.
Os mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão: aquilo era uma
distração das mais excitantes.
E me divertia a valer quando uma nova goteira aparecia, o pessoal
correndo para lá e para cá, e esvaziando as vasilhas que transbordavam. Os
diferentes ruídos das gotas d'água retinindo no vasilhame, acompanhados do
som oco dos passos em atropelo nas tábuas largas do chão, formavam uma
alegre melodia, às vezes enriquecida pelas sonoras pancadas do relógio de
parede dando horas.
Passado o temporal, meu pai subia ao forro da casa pelo alçapão, o mesmo
que usávamos como entrada para a reunião da nossa sociedade secreta. Depois
de examinar o telhado, descia, aborrecido. Não conseguia descobrir sequer uma
telha quebrada, por onde pudesse penetrar tanta água da chuva, como
invariavelmente acontecia. Um mistério a mais, naquela casa cheia de mistérios.
O maior, porém, ainda estava por se manifestar.


NAQUELE dia, assim que a chuva passou, fui como sempre brincar no quintal.
Descalço, pouco me incomodando com a lama em que meus pés se afundavam,
gostava de abrir regos para que as poças d'água, como pequeninos lagos,
escorressem pelo declive do terreiro, formando o que para mim era um
caudaloso rio. E me distraía fazendo descer por ele barquinhos de papel, que
eram grandes caravelas de piratas.
Desta vez, o que me distraiu a atenção foi uma fila de formigas a caminho
do formigueiro, lá perto do bambuzal, e que o rio aberto por mim havia
interrompido. As formiguinhas iam até a margem e, atarantadas, ficavam por ali
procurando um jeito de atravessar. Encostavam a cabeça umas nas outras,
trocando idéias, iam e vinham, sem saber o que fazer. Algumas acabavam tão
desorientadas com o imprevisto obstáculo à sua frente que recuavam caminho,
atropelando as que vinham atrás e estabelecendo na fila a maior confusão.
Do outro lado, entre as que já haviam passado, reinava também certa
confusão. Enquanto as que iam mais à frente prosseguiam a caminhada até o
formigueiro, sem perceber o que acontecia á retaguarda, as ainda próximas do
rio ficavam indecisas, indo e vindo por ali, junto à margem, pintando uma forma
qualquer de ajudar as outras a atravessar.
Resolvi colaborar, apelando para os meus conhecimentos de engenharia.
Em poucos instantes construí uma ponte com um pedaço de bambu aberto ao
meio, e procurei orientar para ela, com um pauzinho, a fila de formigas.
Estava empenhado nisso, quando senti que havia alguém em pé atrás de
mim. Uma voz de homem, que soou familiar aos meus ouvidos, perguntou:

Que é que você está fazendo?
Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se
passava. Logo consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila através
da ponte. O homem se agachou a meu lado, dizendo que várias formigas
seguiam por um caminho, uma na frente de duas, uma atrás de duas, uma no
meio de duas. E perguntou:

Quantas formigas eram?
Pensei um pouco, fazendo cálculos. Naquele tempo eu achava que era
bom em aritmética: uma na frente de duas faziam três; uma atrás de duas eram
mais três; uma no meio de duas, mais três.

Nove!

exclamei, triunfante.
Ele começou a rir e sacudiu a cabeça, dizendo que não: eram apenas três,
pois formiga só anda em fila, uma atrás da outra.
Então perguntei a ele o que é que cai em pé e corre deitado.

Cobra?

ele arriscou, enrugando a testa, intrigado.
Foi a minha vez de achar graça:

Que cobra que nada! É a chuva

e comecei a rir também.

Você sabe o que é que caindo no chão não quebra e caindo n'água
quebra?

Sei: papel.
Gostei daquele homem: ele sabia uma porção de coisas que eu também
sabia. Ficamos conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia,
como dois amigos, embora ele fosse cinqüenta anos mais velho do que eu,
segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe contei uma porção de coisas.
Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei fazendo, e de
como aprendi a voar como os pássaros, e a minha aventura de escoteiro perdido
na selva, as espionagens e investigações da sociedade secreta Olho de Gato, o
sósia que retirei do espelho, o Birica, valentão da minha escola, o dia em que me
sagrei campeão de futebol, o meu primeiro amor, o capitão Patifaria, a
passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que minha amiga não estivesse
por ali, para que ele a conhecesse. Levei-o a ver o Godofredo em seu poleiro:

Fernando!

berrou o papagaio, imitando mamãe:

Vem pra dentro,
menino! Olha o sereno!
Hindemburgo apareceu correndo, a agitar o rabo. Para surpresa minha,
nem o homem ficou com medo do cachorrão, nem este o estranhou; parecia
feliz, até lambeu-lhe a mão. Depois mostrei-lhe o Pastoff no fundo do quintal,
mas o coelho não queria saber de nós, ocupado em roer uma folha de couve.
O homem disse que tinha de ir embora

antes queria me ensinar uma
coisa muito importante:

Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da
sua vida?

Quero

respondi.
O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com
intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos:

Pense nos outros.
Na hora achei esse segredo meio sem graça. Só bem mais tarde vim a
entender o conselho que tantas vezes na vida deixei de cumprir. Mas que sempre
deu certo quando me lembrei de segui-lo, fazendo-me feliz como um menino.
O homem se curvou para me beijar na testa, se despedindo:

Quem é você?

perguntei ainda.
Ele se limitou a sorrir, depois disse adeus com um aceno e foi-se embora
para sempre.


Extraído do prólogo do romance O Menino no Espelho de Fernando Sabino

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